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quarta-feira, 7 de abril de 2010
A sombra política da instrumentalização dos militares
Lisboa – Os acontecimentos de 01 de Abril na Guiné-Bissau revelaram, mais uma vez, a fragilidade das forças armadas face às lutas de poder entre chefias militares e favoritismos étnicos, provavelmente instrumentalizadas por forças políticas na sombra.
«Na minha opinião pessoal não há conflitos reais entre os vários povos de África Apenas existem conflitos entre as suas elites» disse Amílcar Cabral.
Uma reflexão que ainda mantém actualidade na Guiné-Bissau. Amílcar Cabral foi assassinado por militantes próximos, incitados pelo Governo Colonial, mas em circunstâncias que ainda hoje permanecem num mistério, como quase todos os assassinatos que ocorreram no país desde a sua independência.
A política guineense está envolta de uma miscelânea de «tabus» e «ormettas» onde todos os culpados são eternamente presumíveis e todos os mistérios permanecem no mesmo estado, permitindo a proliferação dos rumores que por vezes são fatais alimentando um desejo de vingança. Um círculo vicioso, quase mágico... talvez por isso a palavra «mistério» na Guiné-Bissau seja sinónimo de «feitiço» ou «magia». Só alguns conhecem as suas entranhas mas todos sentem a acção dos seus efeitos.
Todo o fenómeno político é o resultado de uma equação composta por um conjunto de factores. Mas a sua autópsia é complexa, especialmente na Guiné-Bissau, onde faltam ou se ocultam órgãos do «corpo político», essenciais para perceber a origem da doença que trava uma vida política saudável. Provavelmente a explicação de Amílcar Cabral estava certa e fosse premonitória: «Apenas existem conflitos entre as suas elites». Uma explicação da patologia que deve ser considerada quando se autopsia o «corpo político».
Os acontecimentos desta quinta-feira, 01 de Abril, na Guiné-Bissau são o resultado por um lado de uma patologia interna guineense e por outro «conflitos entre as suas elites».
Quer o Presidente da República, Malam Bacai Sanhá, quer o chefe do executivo, Carlos Gomes Júnior «Cadogo», foram eleitos democraticamente através de escrutínios louvados pela comunidade internacional. Apenas o Partido da Renovação Social, PRS, do ex Presidente Kumba Ialá, respeitou a sua tradição denunciando fraudes.
Malam Bacai Sanhá assume a chefia de Estado, após duas tentativas eleitorais, na sucessão de «Nino» Vieira assassinado poucas horas depois da eliminação do CEMGFA Tagmé Na Waie. O partido histórico PAIGC conquistou assim todas as condições para uma governação de estabilidade, porém a sede de poder acelerou as divisões internas e fez crescer uma ala disposta a qualquer aliança conjuntural para tomar o poder.
Mas, na Guiné-Bissau, à imagem de todos os países africanos com um frágil Poder Politico, as armas falam mais alto. Há muito que as forças armadas tornaram-se num poder paralelo, com os seus códigos, jogos, líderes, justiças e maiorias. A situação precária dos seus efectivos justificou alianças e apoios de movimentos e organizações exteriores que afectaria a estrutura militar.
O conflito na Casamança foi um destes factores. O tráfico de armas entre a Guiné-Bissau e a rebelião desta região sul do Senegal tornou-se numa fonte de receitas vital para as FA guineenses, beneficiando também o poder político de Bissau que utilizou o argumento do apoio aos homens do Abade Diamacouné como arma de pressão sobre o litígio territorial para definição da zona económica exclusiva.
A questão da Casamança repercutiu-se no conflito guineense de 1998 quando Assoumané Mané reforçou as suas fileiras com rebeldes da Casamança face ao apoio de Dakar a «Nino» Vieira entrincheirado em Bissau.
A mudança de campo da Guiné-Bissau relativamente a Casamança, principalmente quando em 2001 Tagmé Na Waie apoia o grupo rebelde moderado casamancês «Cassolol» contra o radical independentista Salif Sadio, posiciona Bissau ao lado de Dakar, mas priva as FA guineenses da sua maior fonte de receita clandestina.
A alternativa foi encontrada no narcotráfico embrionariamente lançado a partir do Brasil. O paradisíaco arquipélago de Bijagós, com mais de 80 ilhas, tornou-se na plataforma privilegiada por traficantes latino americanos que rapidamente obtiveram a cumplicidade da marinha guineense, transformando a Armada num contra poder nas FA’s, que por sua vez constituiam já outro contra poder no interior do Estado.
Progressivamente, além das FA’s, os traficantes infiltram-se em todo o aparelho de Estado - Ministérios, policia, tribunais - elevando a Guiné-Bissau ao estatuto de Narcoestado. Tendo já a sua estrutura implantada no país, e micro carteis estruturados, os traficantes retiram-se discretamente, confiantes nas suas antenas e redes locais já formadas e capazes de gerir o «negócio». Situação que acabou por ter consequências dramáticas para o país quando carteis nacionais rivais deixaram de se confrontar na sombra levando a disputa para a arena política.
Além dos ministérios e dos tribunais, as FA são o terreno de predilecção das redes de narcotráfico. O papel do CEMGFA torna-se assim vital para o «negócio». A particularidade tribalista das FA que facilita também a tarefa de controlo desta instituição, é outro elemento chave do mesmo «negócio».
A etnia balanta, que representa 30 por cento da população guineense, constitui 70 por cento dos efectivos das forças armadas. O respeito do CEMGFA passa incondicionalmente por este factor. Daí que não é estranho que os nomes dos candidatos à sucessão do balanta Zamora Induta sejam todos balantas. O factor tribal tornou-se assim num elemento que dificulta as reformas necessárias no seio das FA que têm efectivos excessivos para as necessidades do país, mal equipadas e com chefias, maioritariamente ainda oriundas da guerra de independência, quando todos os combatentes também eram políticos, sem formação militar adequada.
Na sociedade tradicional Balanta ser militar é um prestígio. Os militares são considerados os mais «valentes e corajosos». Durante a Guerra Colonial, os balantas aderiram à luta de libertação, ingressando massivamente nas forças armadas do PAIGC. Não são estrategas ou ideólogos, são sim operacionais e dadas as características de sociedade horizontal, não têm a cultura do respeito da chefia ou da liderança.
Durante muitos anos, os Balantas sentiram-se marginalizados e perseguidos pelo então Presidente «Nino» Vieira, que os considerava «conspiradores e egoístas», apesar de ter sido muito próximo desta etnia, que conhecia intimamente.
Com a Guerra do «7 de Junho» em 1998, os Balantas unem-se contra «Nino», que acaba exilado em Portugal. Com Kumba Ialá na presidência, os balantas entram em diferendo com o Comandante Supremo da Junta Militar e co-Presidente, Ansumane Mané, de etnia Mandinga, que resultou na morte deste quando se debatia a atribuição, e retirada, de patentes aos militares. Em 2004, depois do Golpe de Estado contra Ialá, o então CEMGFA, Veríssimo Seabra é assassinado pelos militares por alegada falta de remuneração dos militares guineenses que haviam estado em comissão na Libéria, uma desculpa para um afastamento radical. O cargo é ocupado pelo balanta Tagme Na Waie, também assassinado em 2009, sendo substituído por Zamora Induta, afastado pelo seu número dois, António Indjai, na passada quinta-feira.
Dificilmente se consegue ignorar a contribuição das FA para a instabilidade política e securitária e para o desenvolvimento do narcotráfico. Bubo Na Tchuto, ex chefe da Armada, qualificado pela imprensa como o «Almirante da Coca» (Le Fígaro – 03 de Abril) controlava, através da marinha, o estratégico arquipélago de Bijagós. António Indjai foi presumivelmente o estratega da operação de tráfico de cocaína, chegada a Cufar no início de Março por via aérea. Ambos estão na origem da «revolta» Militar de 01 de Abril que depôs outro balanta das chefias militares, Zamora Induta, o qual vinha preconizando uma reforma das FA que assentaria no aumento do nível académico e no equilíbrio étnico dos novos recrutas. Zamora é agora acusado de abuso de poder pelo porta-voz da FA, Dahaba Na Walna, também balanta e um dos candidatos ao cargo de CEMGFA.
Mais uma vez o teatro político guineense, recentemente estreado no caminho da democracia participativa activa – com dois actos eleitorais com ampla participação popular – é posto em causa pelas lutas de poder entre chefias militares, provavelmente instrumentalizadas por forças políticas na sombra. As movimentações de 01 de Abril mostram a dificuldade de subjugação do poder militar ao poder político, impossibilitando o avanço da preconizada reforma da segurança e e defesa, apoiada pelos principais parceiros internacionais da Guiné-Bissau, como Portugal, Angola e Brasil.
O papel de mediação assumido pelo Presidente da República, considerado essencial para evitar o alastrar da crise a novos níveis de conflitualidade, poderá no entanto ser posto em causa se nada for feito para quebrar o círculo vicioso que rege a relação entre o poder político e o poder das armas em Bissau.
O Ministro dos Negócios Estrangeiros Português, Luís Amado, lançou já o alerta. «Neste momento, a Guiné-Bissau tem de fazer definitivamente esta opção: ou entra numa via de estabilização e de construção de um estado democrático ou se isola e se torna num caso flagrante de um Estado Falhado», afirmou o MNE português, referindo ainda que «o poder político permanece refém de uma estrutura militar que tem de se acomodar às regras de um estado democrático».
A manutenção das chefias militares que lideraram as movimentações de 01 de Abril poderá à primeira vista ser sinónimo de tranquilidade nas forças armadas. No entanto, não se deve subestimar que a prossecução dos seus interesses, quer no narcotráfico, quer por via indirecta no nível político, poderá significar a continuação do ciclo de instabilidade que tem abalado os anos recentes da Guiné-Bissau.
Rui Neumann
(c) PNN Portuguese News Network
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