Por Miguel Romão
Jornal I
A Guiné Bissau vista do céu parece uma hipótese de paraíso. Mas, o drama da pobreza, da corrupção, impede qualquer deslumbramento continuado
A Guiné Bissau vista do céu parece uma hipótese de paraíso. Os campos de arroz são verdes e cintilam no seu fulgor aquático. Na aproximação a Bissau, o mar é omnipresente e leva a sua imensidão a toda a terra. Mesmo no solo, olhando as pessoas, desde logo a sua diversidade – de faces, de estaturas, de línguas, de modos de ser – parece transmitir uma extraordinária harmonia, pelo menos na superfície, o que, não sendo toda a existência, já é uma verdade. Mas, assente a poeira, o drama da pobreza quase endémica, da impunidade face ao crime, da vulnerabilidade ou da inexistência das instituições, da corrupção, impede qualquer deslumbramento continuado.
Na última década, acentuando as dificuldades estruturais do país, os conflitos militares e a subjugação ao narcotráfico tornaram a Guiné Bissau num case study internacional pelas piores razões. Exemplo de “Estado falhado”, de “Estado frágil”, de ausência de Estado. Exemplo também da incapacidade e da ineficácia das organizações internacionais mais poderosas, como as Nações Unidas e a União Europeia, cujas operações nos últimos anos alimentaram um verdadeiro exército, rotinado e necessariamente descrente, de funcionários e de consultores.
O recente episódio dos refugiados sírios chegados a Lisboa provindos de Bissau, num acto quase de pirataria aérea sobre um avião da TAP, é apenas uma pequena nota de rodapé.
Muitos antes desse episódio, há por exemplo a história dos proprietários de um hotel numa das ilhas guineenses que um dia vêem chegar um pequeno avião e dele desembarcar um grupo de homens que, a troco de uma mala com dinheiro, os força a abandonar a sua casa, o seu negócio e as suas vidas, abandonando a ilha imediatamente no mesmo avião em que os outros tinham chegado – porque afinal aquela ilhota era um local conveniente para o tráfico da cocaína sul-americana a caminho da Europa.
Ou a história dos colombianos milagrosamente detidos no aeroporto de Bissau com um carregamento de 900 (!) quilogramas de droga e que poucas horas depois estavam em liberdade e em paradeiro desconhecido.
Ou a historia da juíza que se surpreende ao ver o criminoso que acabara de condenar a uma forte pena de prisão por um crime grave cruzar-se com ela na rua e dirigir-se-lhe em tom ameaçador. Não deveria contudo surpreender--se: durante muitos anos (ainda hoje?), a Guiné foi provavelmente o único país do mundo a não dispor de uma prisão. A única existente havia sido destruída no último conflito militar na cidade de Bissau e nunca reconstruída... Duas celas na sede da polícia – de uma polícia de investigação criminal sem armas suficientes, sem computadores, sem algemas, sem veículos – serviam então de instalações prisionais, impossíveis de descrever no papel.
Triste ironia: a terra de onde chegam os refugiados sírios é a mesma terra onde muitos guineenses são afinal refugiados no seu próprio país e fora dele.
Professor da Faculdade de Direito
da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira
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