domingo, 13 de dezembro de 2009

"Não percebi o que faziam, mas se soubesse nada podia fazer!"

"Não percebi o que faziam, mas se soubesse nada podia fazer!"

Jovens da CPLP empenhados no combate à MGF, casamentos forçados e práticas culturais que condicionem a mulher.

Ari Sanó tinha oito anos quando foi submetida à mutilação genital feminina, na Guiné-Bissau. "Não tinha consciência do que me estavam a fazer, mas, mesmo que tivesse, não podia fazer nada!" O que teve foi dores, tantas que se contorcia. E a navalha de quem lhe estava a cortar os órgãos genitais escapou, cortando os grandes lábios além dos pequenos.

A sua história, a cabeleireira do Barreiro contou-a em Lisboa no último encontro do grupo de trabalho português contra a mutilação genital feminina (MGF), quinta-feira, Dia Internacional dos Direitos Humanos. Participaram, também, representantes da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, incluindo o director da organização, Hélder Vaz, e elementos do Fórum da Juventude da CPLP.

"O Fórum tomou uma decisão pública, o que é muito importante para a cooperação com esses países, e consequente envolvimento dos governos nacionais, para combater a MGF", sublinhou Alice Frade, da Associação para o Planeamento da Família, uma das organizações que pertencem ao grupo de trabalho.

Os jovens da CPLP assumiram "o compromisso de combater a mutilação genital feminina, os casamentos forçados e todo o tipo de práticas culturais que condicionem o desenvolvimento físico e sexual da mulher, a sua saúde sexual e reprodutiva, que cerceiem a capacidade de escolha e o princípio de livre arbítrio na opção das condições de desenvolvimento individual". Para acabar de vez com casos como o de Ari Sanó.

A mulher, agora com 44 anos, nunca mais esquece o dia em que foi mutilada, nem os dois meses de dores que se lhe seguiram. Foi há 38 anos. Mas outra data ficou também na sua memória: tinha 16 anos quando a obrigaram a casar com um desconhecido. Só o viu no dia do casamento e dele teve duas filhas, sem prazer. Nem aquele outro dia em que chegou de uma viagem ao Senegal e descobriu que a filha mais velha, então com oito anos, tinha passado pelo mesmo sofrimento que a mãe. Tudo em nome da tradição da etnia mandinga, a que pertence a família. O marido morrera entretanto e foi uma cunhada que, aproveitando a sua ausência, submeteu a criança à excisão. Ari não esperou pela quarta provação, pegou nos quatro filhos, incluindo uma outra menina, e fugiu para Portugal. Há 12 anos.

Os primeiros anos foram difíceis e Sanó só pensava em "ganhar a vida". Quando o conseguiu, decidiu que a luta contra a MGF seria a sua bandeira. "Conheço a Guiné-Bissau e quem faz esses trabalhos. São precisas muitas campanhas de sensibilização e que os governos estejam interessados em acabar com essas práticas. Mas não se querem meter, dizem que é tradição", sublinha.

E Ari conta um episódio para comprovar como é difícil o trabalho das ONG. "Uma prima minha faz isso e já me disse que só deixará de o fazer se lhe derem um salário." São profissionais da MGF que fazem com que alguns imigrantes aproveitem as férias no país natal para sujeitarem os filhos a tais barbáries, rapazes ou raparigas, mas são estas que ficam mutiladas.

A história da Ari Sanó tem, no entanto, um final feliz. Encontrou o primeiro e único namorado, um ano depois de chegar a Portugal. Também ele fora obrigado a casar com a prima. Obviamente, ficaram juntos. Ela abriu um salão de cabeleireiro no Barreiro, onde vivem.

A Guiné-Bissau não é o único país da CPLP a manter tais práticas, também há casos em Angola e Moçambique. "Não é uma prática religiosa, não está escrito em nenhum livro religioso. É uma tradição. Nas cidades as pessoas já estão mais bem informadas, o pior é nas aldeias", defende Mariama Baldé. A presidente da associação guineense Uallado Folai foi também ela sujeita à MGF, mas não tem más memórias desse momento. "Fui preparada, deram-me presentes", justifica. Não é por isso que é menos crítica de tais rituais. "Vi como uma prima minha sofreu. Não quero que as mulheres continuem a sofrer!"

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