segunda-feira, 24 de outubro de 2011

A vida dupla de George Wright

Histórias

Fugiu da prisão nos EUA. Em Portugal vendeu frangos, foi pintor e até barman na NATO em Oeiras

                Regresso a casa, no último dia 14, em prisão domiciliária

Por:José Carlos Marques e Marta Martins Silva

Há qualquer coisa de cinematográfico na casa pintada a branco e amarelo, com nome escrito em azulejo, na pequena localidade de Casas Novas, em Colares, Sintra. Foi ali, por entre o chilreio dos pássaros e os latidos dos cães da vizinhança, com a neblina em pano de fundo, que o americano George Wright, procurado há 41 anos pelo FBI, (re)nasceu José Luís Jorge dos Santos há mais de 20 anos.

Por ali, onde era chamado de senhor Jorge e se pensava que tinha nascido na Guiné-Bissau, viveu mais de duas décadas com a mulher, portuguesa, e viu nascer os filhos, que desconheciam o seu passado. Por ali, era comum vê-lo vestido com trajes africanos. Por ali, os vizinhos conheciam-no como pintor, "sempre à procura de trabalho porque os negócios em que se metia não corriam bem", "homem esforçado e conhecedor de plantas que tratava da horta com afinco".

A vizinha Fernanda Graciete, empregada doméstica a braços com a doença do marido, foi vê-lo depois de ter regressado a casa em prisão domiciliária. "Dei-lhe 20 euros e ele chorou abraçado a mim, é uma óptima pessoa que sempre se preocupou connosco".

JORGE, O PORTUGUÊS

Jorge, o português, foi pintor da construção civil, teve um quiosque de artesanato onde vendia almofadas e demais objectos, foi dono de um take-away de frangos e de um outro restaurante. "Era ele que assava os frangos e tudo mas as contas eram difíceis" - recorda Vítor Louçada, o vizinho que lhe arranjou um dos primeiros empregos, como pintor numa obra. Aliás, sempre que um emprego corria mal via-se obrigado a regressar à construção civil.

Mais tarde, George haveria de criar uma empresa, que ainda se encontra on-line, de pintura decorativa, e ser vendedor de uma marca de cosméticos a julgar pelo perfil de um blogue onde publicitava os produtos.

"Algures entre 2007 e 2008 esteve, inclusive, a trabalhar na base da NATO em Oeiras, como barman. Agora que penso nisso não posso deixar de achar graça, sendo o sítio que é, com sistemas de alta segurança e com tantas altas patentes militares onde para entrar ao serviço é preciso deixar lá as impressões digitais. Não ficou muito tempo mas não sei porque saiu" - recorda o pastor Eddie Fernandes, que conheceu George em 1999 na Igreja Internacional Riverside, que fundou em 1996, uma comunidade cristã popular entre os estrangeiros em Portugal e que tem ligação a outras igrejas em vários países do Mundo.

"Veio ter connosco porque se identificava com a forma como encaramos a religião - mais aberta, sem ostracizar ninguém. Era muito empenhado na comunidade, participativo e atento. Fui eu que o baptizei em Carcavelos, no mar, em 2002, bem como à mulher, a Rosário, que vinha sempre com ele. Nas Escrituras diz que quem for baptizado será salvo dos pecados".

Por seguir a Bíblia à letra, Eddie considera que "depois do baptismo, depois de se tornar cristão, tinha sido a altura ideal para George se entregar às autoridades, para enfrentar" a Justiça. "Ele não podia ter vivido mais na mentira, com uma falsa identidade e toda uma vida de engano e duplicidade, como nova criatura em Cristo tinha de ter escolhido a verdade. Quem vai estar um dia diante de Deus: é o George Wright ou o Jorge dos Santos?" - questiona o pastor.

No mesmo ano do baptizado, Eddie também renovou os votos do casal, uma espécie de segundo casamento. Na sua página pessoal de Facebook, George tem como actividades de eleição ‘namorar com a mulher' e ‘ler livros'. As suas bandas de eleição são os Pink Floyd e a cantora Alicia Keys também é presença na aparelhagem. "Eram um casal unido. Também demos emprego à mulher dele na secretaria da igreja, numa altura que eles não tinham trabalho e precisavam de sustentar a família", recorda.

De lá saíram em 2006 depois de "uma divisão dolorosa que ocorreu na Igreja, seguindo o grupo que deu origem a tal ruptura, a Grace Communitty", uma Igreja sem espaço físico. Pelo caminho esteve envolvido em projectos comunitários, de recuperação das cidades, com os Christians Surfers Portugal [os surfistas cristãos], uma tribo urbana que frequenta quer a Igreja Riverside quer a Grace.

"Ele não surfava mas prestou vários serviços à comunidade junto connosco. No fundo trata-se de dar o bom exemplo, visto que somos discípulos de Jesus" - conta Zaca Sobral, que o conheceu nesse contexto e o viu pela última vez no domingo antes de ser preso numa celebração. "Estive com ele na Grace, que faz as congregações [missas] normalmente em sítios diferentes; na praia, em casa das pessoas, é uma igreja ilíquida, mas pouco falámos" - conclui.

GEORGE, O AMERICANO

De George, o americano, o que se sabe é mais nebuloso. Ausente dos Estados Unidos desde 1972, o processo de Wright caiu no esquecimento até que, em 2002, se formou uma comissão com elementos do sistema prisional de New Jersey e da força policial US Marshals. O caso de Wright foi reaberto. Os investigadores voltaram a entrevistar testemunhas relacionadas com o crime que o condenou a uma pena de prisão de 15 a 30 anos, em 1963.

No dia 23 de Novembro do ano anterior, George, então com 19 anos, e Walter McGhee assaltaram uma bomba de gasolina em Wall, New Jersey. Durante o golpe, McGhee disparou contra o dono da bomba, Walt Patterson, um veterano da II Guerra Mundial. Patterson morreu, deixando órfãs duas filhas adolescentes. Detidos dois dias depois, George, Walter e mais dois membros de um gang suspeito de vários assaltos à mão armada tiveram um julgamento rápido.

Em 1963, George entrou na prisão de Leesburg, New Jersey para cumprir a pena. Matt Schuman, do Departamento Correccional de New Jersey, explicou à Domingo como é que Walter escapou da prisão, sete anos depois da condenação: "Era uma prisão de segurança mínima. George e outros três reclusos conseguiram iludir a segurança e aceder ao carro de um dos guardas. Fizeram uma ligação directa e fugiram". George terá então rumado a Detroit, onde se juntou ao grupo político radical Black Liberation Army (Exército Negro de Libertação) com George Brown - seu companheiro de fuga da prisão. Estávamos em 1970.

Em Outubro de 1972, George, o amigo Brown, as suas companheiras de então, um outro homem e três crianças (uma delas filha da companheira de George) desviaram um avião comercial que viajava de Detroit para Miami. George estaria vestido de padre, com uma arma escondida dentro de uma Bíblia. Tripulação e passageiros foram mantidos sequestrados no aeroporto de Miami, enquanto o grupo pedia um resgate de um milhão de dólares. A quantia foi entregue por agentes do FBI vestidos apenas com fatos de banho - uma exigência dos sequestradores para evitar que os negociadores trouxessem armas. Soltos os passageiros, o grupo obrigou os pilotos a levá-los para Boston, onde o avião foi reabastecido.

A viagem acabou na Argélia, país conhecido por conceder asilo político a vários radicais americanos. Detidos durante poucos dias, os sequestradores foram libertados e separaram-se. Os parceiros de George seriam detidos em Paris em 1976. As autoridades perderam o rasto de George. Terá sido na Guiné-Bissau que George se passou a chamar José Luís Jorge dos Santos. Fez-se português pelo casamento com Rosário Valente, educadora de infância na Guiné.

A ‘task-force' criada em 2002 para desvendar casos antigos deu frutos. A vigilância a familiares de Wright na América terá levado à intercepção de uma chamada telefónica de Sintra para uma irmã de George. A cooperação do FBI com a PJ permitiu chegar a Wright. "Estiveram em Portugal dois agentes americanos a trabalhar com as autoridades portuguesas", confirma Matt Schuman. Tanto o FBI como o Department of Corrections escusam-se a comentar as hipóteses de o pedido de extradição ser bem sucedido. "Vamos esperar para ver como é que o caso se resolve", diz Matt Schuman.

JACK, NA GUINÉ

George e José Luís são uma e a mesma pessoa, unidas pelo sangue e separadas pelo bilhete de identidade. Mas na equação também entra Jack, como era conhecido nos tempos da Guiné, pelos camaradas do basquetebol, desporto que também jogou em Portugal, mas aqui como amador. "Foi meu treinador quando eu tinha 16 anos. Um miúdo de 16 anos não pergunta ao treinador de onde ele é e de onde vem. Até porque nessa altura ele já falava um português perceptível - George terá estado em Portugal no fim dos anos 70 antes de ir para África, altura em que conheceu Rosário - e marcou o meu percurso", lembra Paulo Monteiro, que o conheceu "no início dos anos oitenta".

"O Jack foi meu treinador da equipa do Banco Nacional da Guiné, antes de ir como jogador e treinador para o Benfica de Bissau. Nessa altura já namorava com a Rosário, terão ido para a Guiné como experiência de vida. Há cerca de quatro anos reencontrámo-nos em Portugal, foi ele que me procurou, e recuperámos a amizade. Fomos visita da casa um do outro, conheço a família, estou solidário com a dor". Tanto que Paulo é um dos organizadores de um torneio de basquetebol que hoje se realiza em Queluz e que tem como objectivo angariar fundos para ajudar a família de George".

Na internet, em blogues e no Facebook criado para apoiar a causa - onde, concretamente, se pede a não extradição de George Wright - os amigos que o foram conhecendo ao longo da vida vão deixando testemunhos. Além do torneio haverá jantares e sessões de cinema com o objectivo de juntar dinheiro para ajudar a família. Uma família criada em Sintra.

"Lembro-me de ele chegar aqui, da mulher andar grávida, dos meninos crescerem. Na altura, quando a casa foi vendida, dizia-se que vinha para cá um americano, mas depois veio ele e nunca mais pensámos no assunto, porque achámos que era africano", lembra a vizinha Fernanda.

"A gente o que ele fez não sabe, mas que para nós sempre foi boa pessoa, foi", precisa Adelaide Tomás, umas quantas portas mais à frente. Cláudia Carolino , da porta ao lado, ofereceu-se para fazer as compras sempre que a família precisar. "Estou a pensar como os posso ajudar de qualquer forma. Acho que eles merecem, estão a passar um mau bocado".

Talvez não seja afinal a casa que remeta para a Sétima Arte mas sim a vida de um dos homens mais procurados da América que escolheu a idílica Sintra para se refugiar de um passado que queria esquecer, argumento à altura de qualquer ficção, cujo ‘The End' [o fim] surgiu em letra grande nas páginas dos jornais no final do mês de Setembro. Embora o caso esteja, ainda, longe de terminar.

BAPTIZADO "PARA LIMPAR PECADOS" EM 2002

George Wright, de 68 anos, dirigiu-se à Igreja Internacional Riverside em 1999 onde, juntamente com a mulher, fez um curso de iniciação cristã. O baptismo chegou em 2002, na praia de Carcavelos, "um ritual emocionante que deixou todos os presentes sensibilizados", lembra o pastor Eddie Fernandes, que além da Riverside pertence aos Motards Cristãos.

Na Igreja, com escritório nas Fontainhas, em Cascais, e auditório num centro comercial em São Pedro do Estoril, George "era muito interventivo. Participou, inclusive, em acções de apoio a orfanatos e em torneios de basquetebol solidários". Na memória do pastor Eddie também está a festa africana, onde "o Jorge cozinhou comida da Guiné-Bissau".

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