Domingos Simões Pereira foi demitido do cargo de Primeiro-ministro da Guiné-Bissau sem que o Presidente da República lhe tenha explicado os reais motivos da decisão. Nesta entrevista ao Expresso das Ilhas, Simões Pereira diz que “aquilo que os media sabem é aquilo que eu sei” e acusa José Mário Vaz de ter “uma vontade desmedida de chamar a si todos os poderes”. Quanto às acusações de nepotismo e corrupção, responde: “muita da gente que faz essa acusação tem sobre si pendente um conjunto de acusações, algumas delas até com instrução judicial”.
Expresso das Ilhas – Que expectativas tem para o futuro próximo?
Domingos Simões Pereira - As expectativas mantêm-se inalteradas em relação àquelas que tínhamos no período pós-eleições. O PAIGC é o partido mais votado e é a quem incumbe nomear o governo. O Presidente demitiu o Governo mas tem de propor ao PAIGC, de acordo com as suas estruturas, a formação de um novo Governo.
Tem-se falado também no nome de Carlos Gomes Jr. como uma alternativa ao seu nome…
Estou a ouvir isso pela primeira vez. Não quero comentar.
O Dr. José Mário Vaz fez-lhe acusações de nepotismo e de corrupção. Como responde a essas acusações?
Não é por antecipação que nós conseguimos colar esse tipo de adjectivos às pessoas. O percurso das pessoas é aquilo que temos objectivamente de aproveitar. Eu sou servidor público há muito tempo, em várias instituições tanto de cariz nacional como internacional e até hoje tenho recebido uma avaliação sempre positiva e com alguns destaques até. No último ano, enquanto membro do governo, nós temos um programa com o FMI, esse programa tem merecido uma avaliação continua por parte do FMI, portanto não me parece que, mesmo para a opinião pública nacional, eu tenha necessidade de grandes argumentações para as pessoas perceberem que aquilo que se está a dizer não passa de uma manobra completamente frustrada de me tentar juntar a uma escumalha à qual eu não pertenço. Em contrapartida, muita da gente que faz essa acusação tem sobre si pendente um conjunto de acusações, algumas delas até com instrução judicial, e eu penso que deviam primar mais de assegurar à nação guineense alguma condição moral para o exercício da função que de facto desempenham.
Timor Leste já anunciou que ia cancelar toda a cooperação com a Guiné-Bissau. Acha que o cenário pode vir a complicar-se ainda mais?
Esperemos que não. Esperemos que o sentido de Estado e a responsabilidade de manter o clima de paz e prosperidade leve as pessoas a ponderarem qualquer actuação. O que nós esperamos é que o senhor Presidente da República, tendo chamado a si esse conjunto de responsabilidades, esteja à altura de cumprir aquelas que são as reais expectativas da população. Ele exerceu uma prerrogativa que lhe estava adstrita e agora tem de restituir ao PAIGC a possibilidade de formar governo e em que respeita aquilo que são as estruturas internas do partido. Se não o fizer, se violar esses princípios constitucionais, aí sim estará a criar, de facto, condições para alguma perturbação que nós não desejamos e que esperamos que não volte a acontecer neste país.
José Mário Vaz pode vir a ser expulso do partido?
José Mário Vaz esticou, de facto, a corda toda. Porque a última reunião do Bureau Político já tinha lançado o alerta no sentido de que se não respeita o partido que patrocinou a sua candidatura, é o mínimo que nós entendemos que se deve fazer. Retirar-lhe a confiança política e, ao fazê-lo, pôr em causa a condição que levou a que o partido o apoiasse. A partir daí tudo é possível.
Como se explica que, na Guiné-Bissau, os governos não cumpram os mandatos até ao fim? Como explicar toda esta instabilidade governativa?
Eu não quero explicar as situações antecedentes que não conheço e não acompanhei com o devido conhecimento de causa. Estou a acompanhar este que se resume a uma intenção inaceitável de partidarismo, de concentração de poderes, de não respeitar as regras do jogo. O espaço de intervenção do Presidente da República num regime semi-presidencial está bem definido, tal como está o do chefe do governo e outras instâncias. Mesmo podendo admitir algumas dificuldades de relacionamento pessoal, o respeito dessas regras e das leis deviam permitir que as instituições do país funcionassem. O senhor Presidente da República tem dado mostras de inconformismo daquilo que são os espaços reservados pela Constituição e entende como forma de contornar isso fazer uso de uma prerrogativa que não é. Invocar uma crise, como ele tenta fazer, não faz qualquer tipo de sentido. O país nunca apresentou os indicadores que neste momento atingiu, tem o apoio da comunidade internacional, o quadro é o mais favorável para as reformas que o país precisa. Portanto a única compreensão possível para este momento é, realmente, uma vontade desmedida de chamar a si todos os poderes.
Agora, ele próprio, ao fazê-lo, tem consciência da incoerência que está a cometer? Por isso adiciona outras acusações que não têm qualquer tipo de sentido, porque, como já disse, ninguém alguma vez me apontou o dedo e eu próprio quando tive a oportunidade de o questionar sobre se alguma das acusações que ele fazia era dirigida a mim, ele confirmou que não tinha nada contra mim mas que eram sobre alguns elementos do governo. Quando teve oportunidade de anunciar ao país as razões por que ia demitir o governo sentiu que era necessário ter mais um ingrediente. Acho que foi infeliz. Nós que servimos a estes níveis temos a obrigação de sermos coerentes e de dizer a verdade e, neste caso, o senhor Presidente da República faltou à verdade e o povo está consciente disso.
O decreto de exoneração é tudo menos esclarecedor. O Presidente da República chegou a apontar-lhe as verdadeiras razões para a demissão do Governo?
A mim não. Estive a acompanhar todo este processo pelos media, e aquilo que os media sabem é aquilo que eu sei. Não há mais nada.
José Mário Vaz nunca o chamou para lhe explicar o porquê desta decisão?
Não. Quando o Presidente da República começou a auscultação dos partidos políticos, eu, na condição de presidente do PAIGC, também fui convidado. O Presidente pediu que nós o ajudássemos a compreender e a ultrapassar a grave crise política em que o país estaria mergulhado. E a nossa resposta foi exactamente essa. Que a única entidade nacional que faz referência a uma crise é o Presidente da República. Portanto, sendo ele o conhecedor das razões da crise e dos factores causadores dessa crise ele teria de partilhar isso connosco antes de nós podermos acompanhá-lo nessa análise, algo que nunca fez.
Teme que a comunidade internacional possa agora retirar os apoios que tem concedido?
O povo guineense e o país não merecem isso. Penso que não é o que vai acontecer. A comunidade internacional tem acompanhado atentamente o evoluir da situação e todos acreditamos que, apesar de termos perdido algum tempo, o Presidente vai voltar à razão, vai devolver o poder legislativo ao PAIGC e vai-se comportar criando condições para que esses apoios possam fluir a favor da Guiné-Bissau.
Que esperanças para o futuro próximo?
Eu acredito no futuro. Eu sei que este não é o melhor momento, mas este é um obstáculo num percurso que está definido e ao qual o povo guineense aderiu. Vamos ser capazes de o ultrapassar e continuar esta caminhada para a paz, a estabilidade e para o desenvolvimento.
A prerrogativa do Presidente derrubar o governo que não elegeu é uma afronta à República”
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