[Carlos Lopes Pereira] O golpe de estado militar na Guiné-Bissau foi “legitimado” pela Comunidade Económica de Estados da África Ocidental (Cedeao). Foram assim ignoradas decisões da própria organização e de outros fóruns internacionais como ONU, União Africana, União Europeia e Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, que condenaram o golpe de 12 de Abril e ameaçaram os autores com sanções e uma força de interposição.
Dois enviados da Cedeao, os ministros dos negócios estrangeiros da Nigéria e da Costa do Marfim, nomearam na semana passada, em Bissau, com o apoio dos golpistas e seus aliados, um presidente da república pelo período de um ano. Trata-se de Serifo Nhamadjo, vice-presidente do parlamento, dissidente do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), que concorreu às eleições presidenciais de Março, ficando em terceiro lugar com 15% dos votos. Nhamadjo anunciou que vai escolher o primeiro-ministro de um governo “de transição”, mas o PAIGC rejeitou liminarmente participar ou pactuar com qualquer solução que legitime o golpe e seja um “prémio” para os golpistas.
O reconhecimento “de facto” do movimento liderado pelo general António Indjai e pela cúpula das forças armadas agrava o isolamento do país. Organizações internacionais suspenderam já os programas de auxílio económico e Cabo Verde – historicamente ligado à Guiné-Bissau e também membro da Cedeao – anunciou que não reconhece qualquer presidente ou governo saído de um golpe de estado.
Poucos acreditam que a Cedeao consiga cumprir a decisão de enviar uma força militar capaz de assegurar a transição, de fazer avançar a reforma das forças de defesa e segurança (impedida pelo golpe) e de combater o narcotráfico. Apesar de a Nigéria parecer empenhada em travar a influência de Angola na sub-região.
Num país há mais de um mês sem governo, as manifestações estão proibidas, a liberdade de informação é escassa, há pessoas que permanecem escondidas, outras continuam refugiadas em embaixadas. Os militares perseguem membros do governo derrubado, dirigentes partidários e quadros do aparelho de justiça, tendo divulgado uma lista de individualidades proibidas de deixar o país.
Também é incerta a situação de Carlos Gomes Júnior, o líder do PAIGC, primeiro-ministro nos últimos anos e candidato vencedor da primeira volta das eleições presidenciais com 49% dos votos, e de Raimundo Pereira, presidente da república interino, que foram presos na noite do golpe e mais tarde libertados e enviados para Abidjan. Sabe-se que estão na capital marfinense mas com a liberdade condicionada, até porque a Costa do Marfim, com a Nigéria e o Senegal, tem sido dos países mais activos na implementação da solução imposta pela Cedeao.
Quanto à situação económica e social, as organizações não-governamentais (ONG) guineenses denunciam o não funcionamento dos serviços públicos, o não pagamento dos salários aos funcionários do Estado, os entraves colocados à campanha da castanha de caju, principal fonte de receita do país e da maioria dos camponeses, a suspensão de projectos apoiados por instituições internacionais e a paragem quase completa da vida económica. Tudo isso “está a provocar uma situação de aumento acentuado dos níveis de pobreza e vulnerabilidade das populações do mundo rural e dos bairros da capital”.
As ONG criticam também a paralisação do ensino e explicam que o golpe de estado no início da campanha do caju e em vésperas da preparação do ano agrícola compromete a segurança alimentar, a situação sanitária e a economia das populações, situação agravada pela fuga das populações da capital para o interior e pelo risco de propagação de epidemias.
Tal como o PAIGC e outros partidos e movimentos sociais que constituíram uma frente anti-golpe, as ONG traçam um quadro severo da situação na Guiné-Bissau. Hoje, com uma administração estatal inoperante, a desorganização e a incerteza reinantes estão “a favorecer a pilhagem crescente” dos recursos, pela maior permeabilidade das fronteiras, e estão, sobretudo, “a contribuir para a intensificação de negócios ilícitos como o narcotráfico”.
Rejeitando “arquitecturas políticas” que visam contornar o retorno à legalidade democrática exigida pelos guineenses, as ONG defendem a restauração da ordem constitucional e a reinstalação do governo eleito e do presidente da república interino, bem como a retoma do processo eleitoral presidencial interrompido, como recomenda o Conselho de Segurança das Nações Unidas. E pedem o restabelecimento das liberdades fundamentais sob sequestro e um processo de diálogo em que participem as autoridades democraticamente eleitas, as instituições legítimas do estado, os partidos políticos, a sociedade civil e as organizações internacionais envolvidas.
(Artigo publicado no “Avante!” Nº 2007, 17 de Maio de 2012)
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